Viagem musical
Fevereiro de 1980, noite quente de verão. Lotada, a mais famosa casa de shows do Brasil, Canecão, vivia a expectativa de abrigar o grande acontecimento musical do momento: o show do disco Mel, de Maria Bethânia, que estourara em todo o País, puxado pela faixa Grito de Alerta, de Gonzaguinha, vendendo mais de um milhão de cópias.
Com direção de Wally Salomão, regido por Perinho Albuquerque, um time grandioso de músicos era acompanhado por orquestra com violinos, cellos, flautas, trompetes e trombones. Bethânia não apenas cantava, mas iluminava, fluía, declamava poemas e interpretava cada canção com beleza e entrega únicas – características constantes de sua carreira irretocável.
Mal as luzes se apagam, enquanto o show começa com a marcante percussão e instrumental de É de Manhã/A Tua Presença, atrás uma trilha de lanterna que abre caminho entre as mesas, conduzido por um segurança, está um convidado que não poderia, legalmente, estar ali e fazia, inadvertidamente, uma entrada secreta digna dos mais famosos ídolos. Um guri de 9 anos, que não tinha a menor noção, mas estava prestes a presenciar uma das mais impactantes experiências musicais até hoje: eu, segurando firme a mão do pai, responsável por liberarem minha entrada no recinto e outras façanhas de uma das melhores viagens de minha vida. Uma viagem, acima de tudo, musical.
De ônibus – Tudo começara de maneira heroica para a época e para nossas condições financeiras. Afinal, pai funcionário público e mãe professora primária, nos anos finais da ditadura militar, levarem a família para a cidade maravilhosa não era algo comum. De ônibus, o time de intrépidos aventureiros, que ainda incluía minha irmã, tia e prima, percorreu 1.800 quilômetros em 20 horas de viagem, de Pelotas ao Rio de Janeiro, para passar uma semana de férias. A proeza seria igualmente grandiosa na volta, quando economias arregimentadas com disciplina nos permitiram voar pela primeira vez de avião – da Varig, com talheres de alumínio e louças de porcelana – um verdadeiro acontecimento.
Estar no Rio de Janeiro naquele momento era vivenciar uma atmosfera única. A trilha sonora da época era Menino do Rio, de Caetano Veloso, cantada doce e sensualmente por Baby Consuelo, na abertura da novela “Água Viva”, da Globo, que o país parava diariamente para assistir. A trilha da novela, aliás, trazia clássicos como Wave, na voz de João Gilberto, que até hoje me transporta automaticamente, aos primeiros acordes, para um pedaço de orla da zona sul carioca.
Seresteiro, tendo a vida toda cantado referências turísticas e poéticas do Rio, o pai quis ficar no coração da Copacabana (“Princesinha do mar/pelas manhãs tu és a vida a cantar”) de seu imaginário boêmio, o posto 6. Por causa de Dick Farney cantando Meu Rio de Janeiro, incluiu no city tour a Ilha de Paquetá, que “É uma joia rara/em tua Guanabara”.
E, claro, o show de Bethânia que, não por acaso, tinha como primeiro número Loucura, de Lupicínio Rodrigues, uma das canções mais marcantes de minha vida, integrante do repertório de seresta do pai e, a partir daí, para sempre presente nas rodas de violão lá de casa, eu e minha irmã revezando aqueles versos com força que eu jamais sonhara existir: “Ó Deus, será que o senhor não está vendo isto?/Então por que é que o senhor mandou Cristo aqui na Terra semear amor”. Para arrematar: “Salve seu mundo com a minha dor.”
Imagens – Muitos anos depois, já adolescente, quando estava no pré-vestibular, redescobri o disco Mel e, em meio à dor de uma paixão não correspondida, fiquei semanas escutando-o sem parar, sorvendo seus clássicos: Gota de Sangue, de Angela Ro Ro; Ela e Eu e Queda D’água, ambas de Caetano; o piano de Tulio Mourão na sua cortante Nenhum Verão. E, claro, o Grito de Alerta, de Gonzaguinha, com a clássica descrição de um caso mal resolvido de amor: “Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta…”
Memórias não são feitas de fatos, nem de falas, muito menos de registros das coisas como elas realmente foram. São sensações, reconstruções, elaborações. Numa busca ávida por imagens factuais, vou ao Youtube e (felizmente, mais tarde me dou conta) encontro raros registros daquela apresentação. Mas lá está o áudio na íntegra. Numa tarde cinza de sábado, coloco os fones, fecho os olhos e deixo a música me transportar novamente no tempo e espaço, reverenciando essa eterna viagem musical que nunca termina.
Lucia
27 de julho de 2020 @ 18:38
Que texto lindo, com toda a comoção que sei que sentes pelo teu pais e suas serestas. Me remeteu à lembrança de chegar no Rio – acho que conheci o Rio um ano ou dois depois (também de ônibus, é claro, e sem Varig!); à novela que eu mais gosto na vida, Água Viva; à força impressionante de É de manhã; ao poder da Bethânia. E, principalmente, à sensação de deslumbramento que uma descoberta faz quando a gente é pequeno!
Uilson Paiva
29 de julho de 2020 @ 12:07
Lucia, obrigado por ter embarcado junto comigo nessa viagem musical! A trilha sonora da novela Água Viva é ótima, escutei inteira escrevendo esse texto! Beijo!